Indicado ao Oscar, filme ‘Corra’ aterroriza pela potente metáfora sobre o racismo
No filme, a lobotomia é a imagem metafórica
mais potente da opressão
A
cabeça de um alce na sala. Personagens sombrias que falam sempre para não
deixar o segredo conspiratório aparecer: a fala que esconde. Ambientes
silenciosos o suficiente para dar destaque a pequenos e ensurdecedoressons como
a colher de Missy Armitage que mexe o chá na xícara. Pessoas que como vultos
trafegam pela casa; sempre à meia luz. Pessoas feridas, até à bala, que
resistem em morrer para prorrogar a saga persecutória. Cenários clássicos dos
filmes de terror norte-americano compõem a atmosfera sufocante de Corra! Mas o
que rouba a nossa respiração não é a trama de terror, suspense, cujo enredo é
didaticamente apresentado pelo diretor Jordan Peele; algumas vezes por meio do
recurso ao flashback. O que choca é quando o terror é metáfora. O solo do qual
brota a metáfora é demasiadamente americano e, sem dúvida, brasileiro. A ideia
de que é possível não ser racista numa sociedade racista abre o filme. Os
argumentos, sabemos, são os mesmos com a diferença de um ao qual o Brasil,
diferentemente dos USA, sequer pode se reportar: eles elegeram um presidente
negro. O pai de Rose (namorada da personagem principal e negra Chris) não seria
racista porque votaria em Obama pela terceira vez, se possível. Ele não é
racista, agora a partir de sua própria boca, pela consciência de que só tem
dois empregados negros por os considerar da família e por ser bondoso e grato o
suficiente para não os demitir; embora se sinta autorizado a explorá-los. Para
a caricatura do racismo, o diretor reservou o irmão de Rose; personagem que
representa tantas pessoas e cujos comentários infames, racistas, são
supostamente atenuados por seu perfil delirante e bêbado. A sua família reclama
do seu modo pouco hospitaleiro em relação a Chris, mas não diretamente do seu
racismo; como acontece, aliás, nas “sensatas” famílias brasileiras.
Num
ambiente branco, exclusivamente branco, os negros entram como acessórios. Não
apenas porque os funcionários são negros, que também é o que há de mais óbvio
no Brasil, mas porque seus corpos são desejados de modo fragmentado. O corpo
negro é fatiado em diferentes habilidades. Ele interessa apenas no que pode
prover, fragmentariamente, ao branco.
Além
disso, apropria-se culturalmente da estética negra sem nenhum intuito de
combater o racismo, mas para ratificá-lo porque faz da cultura negra apenas um
adorno mercadológico sem nenhuma história.
Quando
opta por deixar os negros lobotomizados, o diretor Jordan Peele retira de cena
a dialética do senhor e do escravo e toda a ambiguidade do processo de
escravidão, conforme narrou Hegel, para radicalizar a tese de que a dominação é
estruturada na opressão. A lobotomia é a imagem metafórica mais potente da
opressão. Ela mostra que longe de desejarem ser escravos (por uma espécie de
artimanha inconsciente da sujeição) os negros foram, torturados, agredidos e
silenciados como numa história de terror em que a personagem não consegue falar
porque lhe foi retirado o direito fundamental à liberdade. O sangue,
abundantemente presente nos filmes de terror, mostra, contudo, que o direito à
liberdade não se recebe, mas se conquista. Chris o conquistou.
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